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O Povo Brasileiro - Darcy Ribeiro
MATRIZ AFRO
”O que aconteceu no Brasil foi que os africanos foram tão fundo na construção deste país, que hoje eles já não são eles. Eles somos nós”.
África, berço da humanidade. Espaço geográfico que abriga línguas e culturas variadas. A África nunca foi uma realidade homogênea em termos humanos ou culturais. Toda cultura brasileira está impregnada desta herança africana. Sua presença fez quase tudo que aqui se fez.
BANTUS
Os africanos que primeiro chegaram aos trópicos brasileiros vieram da costa ocidental africana, ao norte do equador. Foi o chamado ciclo da guiné. Depois foram os Bantus. A palavra Bantu significa “os homens”. Eles vinham das regiões de Angola e do Congo, da África Central Atlântica.
Os povos Bantus possuíam uma longa história. Produziam objetos de cerâmica, praticavam agricultura e criavam gado. Haviam domesticado diversas plantas e dominavam as técnicas da metalurgia. Além disso, bem antes da chegada dos europeus na África, se ordenavam em Estados, conheciam o comércio, a moeda e a escravidão. Os Bantus conferiam um valor sagrado ao ferro. Como muitos outros povos, celebravam sua potencia divina. Por toda África e no Brasil espalharam-se deuses metalúrgicos.
O sagrado está presente em todos os instantes e todas as instâncias da vida Bantu. O natural e o extranatural são inseparáveis. Os Bantus acreditam na existência de dois mundos, o visível e o invisível. Acreditam na interação destes mundos e em um deus que é criador e pai de tudo o que existe, pai dos homens, pai das coisas, pai dos insetos.
Deus, criador de toda criação, não pertence ao mundo dos seres, das criaturas. Ele é o incriado, o princípio sem princípio, de todo e qualquer princípio.
“Como dizem os Bakongos, acima de tudo reina Zambiapungo. Kalunga Zambi dizem os ubuntus. São nomes que traduzem sempre ideias de união, laço ou vínculo supremo”.
Os bantus cultuavam deuses chamados Inquicis e reverenciavam seus antepassados. Os antepassados tem sua aldeia a maneira dos vivos. Na aldeia, possuem casas e campos. São senhores e proprietários da terra e da água, das florestas e do sertão, com todos os animais que neles vivem e as palmeiras que nelas crescem.
“As primeiras linhagens, os primeiros clãs, as primeiras migrações para os territórios é que legitimam o poder sobre estes territórios. E, por isso, aqueles indivíduos que descendem mais próximo diretamente de alguns ancestrais míticos são aqueles que detém o poder. Dentro desta verticalidade, os mais velhos, mais próximos destes ancestrais, são indivíduos não só que tem o poder, mas que tem o poder também religioso. Pode-se então compreender o culto aos ancestrais, o culto aos mortos. Porque são esses mortos que, de certa maneira, trazem as benesses, trazem a possibilidade da fertilidade das mulheres, da fertilidade dos campos, na agricultura, de afastamento de certos perigos. Dai o constante culto aos ancestrais.
Toda vida é sagrada e, no centro de toda a criação, está o ser humano. A primeira realidade sagrada que Deus criou. A vida humana, o homem, centro da criação, é o critério do bem e do mal. A ética negro-africana é antropocêntrica e vital.
CONGO
No reino do Congo existiam três ordens: a aristocracia, os homens livres e os escravos. O rei não se confundia com um comum dos mortais. Ao cometer incesto com a irmã tornava-se o sem família, o que o capacitava a governar todas as famílias. O ato incestuoso e a iniciação lhe dava um poder sobre os encantamentos, o poder dos feiticeiros. Quando o rei aparecia, sentava-se em uma cadeira de marfim e trazia braceletes de ferro e marfim. Ou então, o vestuário artisticamente tecido ou, ainda, certas peles de animais que lhe estavam reservadas. Na cabeça, um boné bordado e, ao ombro, uma cauda de zebra.
Diante dele, as pessoas se ajoelhavam e lançavam poeira em cima da cabeça, antes de implorar a sua benção, que ele dava estendendo as mãos e mexendo os dedos. Por vezes, nas grandes manifestações, ele se levantava e, junto com os poderosos do país, entregava-se à uma dança reservada, cujo ritmo era cheio de pompa, de gravidade e de graça.
Esse rei e o seu povo conheciam as artes da guerra. Dizem que os atiradores reais eram capazes de lançar sucessivamente 28 flechas antes da primeira flecha disparada se cravar no chão.
ESCRAVIDÃO
A África era um continente de escravos e de senhores de escravos. No reino do Congo, a aristocracia empregava escravos no cultivo dos campos. Entre os negros alças, escravos eram comprados e vendidos, usados como soldados e lavradores, servindo ainda de moeda para transações comerciais. Assim, quando europeus e africanos se encontraram, ambos já sabiam muito bem o que era escravidão.
LÍNGUA
Entre os Bakongos do estuário do Zaire a palavra para-sol é tango, uma palavra que significa tempo, tempo presente, hora, ocasião, tempo favorável, momento preciso. Assim, quando um Bakongo quer saber que horas são, ele pergunta: “Que sol é”?
SÍMBOLOS
Para muitos povos africanos, o sol simboliza a transição entre a vida e a morte. Quando o sol desaparece da vista humana, os Bakongos dizem que ele é a canoa que transporta a alma para o mundo dos mortos.
NO BRASIL
No século XVIII houve uma alteração no contingente negro de nossa população. Enquanto traficantes de escravos de outras regiões brasileiras permaneciam nas rotas de Angola e do Congo, a Bahia passou a enviar navios para a costa de Mina e, em seguida, para o golfo de Benim.
Começou a receber ondas sucessivas de Gêges, de Nagôs e, em menor quantidade, de Alçás.
A expressão Gêge designava grupos étnicos do antigo daomé, como a gente Fon. A expressão Nagô referia-se à grupos étnicos de língua iorubá. Esses agrupamentos vieram para dar a definição única da fisionomia biológica e cultural da gente da Bahia, de Recife e de São Luís do Maranhão. Os Gêges trouxeram seus Voduns, os Nagôs trouxeram seus Orixás e os seus Oriquís.
“O africano para tudo ele tem o cântico, ele tem o oirquí, ele tem a forma de saudar seu pecado, seu erro. O orixá não tem pensamento negativo. O orixá não castiga ninguém. O candomblé é uma religião que para ela nossa formação é toda mística, é toda particular. É uma coisa que vai no sangue da pessoa”.
OS ALÇÁS
Os Alçás eram vizinhos dos Iorubanos. É provável que eles sejam um povo autóctone, coisa mais do que rara na história da humanidade. Ainda no século XIV os Alçás se viram envolvidos pela maré islâmica que se espraiou pelo continente africano. Aprenderam a ler e a escrever em árabe. No início do século XIX chegaram ao Brasil onde foram chamados de Males, promovendo insurreições sanguinárias contra a escravidão. As nações dos Alçás eram florescentes e das mais adiantadas da África Central. Era de prever que uma nação assim aguerrida e culta não poderia fazer passivas máquinas de plantio agrícola. Por sob a ignorância e a brutalidade dos senhores brancos, o islamismo organizou-se em seita poderosa.
OS NAGÔS
Os Iorubás eram um povo, não uma nação e retraçavam sua origem à cidade de Ifé, espaço ancestral que se tornou célebre pelos requintes de suas esculturas de metal. No Brasil, os iorubanos foram chamados de Nagôs. Entre os diversos grupos iorubanos, os deuses variam de região para região, de reino para reino. No império de Orió, por exemplo, quem estava no centro era Xangô, o deus do trovão.
Além de Orió, os pequenos reinos dos Iorubás tornaram referencias preciosas para nós brasileiros, como Ketu, a terra de Oxossi e Irê, a terra de Ogun.
CRENÇA, TECNOLOGIA E ESTÉTICA
Regiões que haviam conhecido, antes de qualquer contato com europeus, a metalurgia, um alto grau de urbanização, uma produção estética sofisticada e a economia monetária.
“Podemos dizer que as artes africanas se desenvolveram sobre quatro pilares: a pessoa, a comunidade, a natureza e a criação. Mas também, sobre a tradição, o passado e a história. E que esses quatro pilares manifestam-se com exuberância através de formas extraordinárias, formas que não representam a realidade tal qual a percebemos, mas que procuram representar os valores que estão além do real. Ver o que não vemos. Por meio disso, os africanos criaram formas esculturais e artísticas únicas no mundo”.
“Deuses mudam o nome. Ogun, por exemplo, não é apenas o deus do ferro, mas deus da tecnologia. Daí que hoje, tanto na Nigéria como no Brasil, seja visto como senhor das novas tecnologias, do repertório high tech, da informática. Ogun é o orixá das vanguardas e dos computadores. E, por conta de ter aberto uma picada em tempos míticos, ele é hoje o deus das highways”.
Os orixás iorubanos estão vivos entre nós. Daí que hoje, não sejam somente iorubanos, mas mitos multinacionais.
“As artes africanas e as culturas africanas podem ajudar a salvar o homem contemporâneo que esqueceu, por completo, que existem outras coisas para além do dinheiro e dos valores econômicos. As culturas africanas e mesmo as religiões africanas nos ensinam que existe algo além do mundo visível, e que o ser humano não é apenas um ser de carne, mas que existem também o espírito, o coração e outros valores além daqueles que podemos ver”.
“A cultura brasileira tem por sua base negra, por sua base índia, um vigor que vai permitir que ela floresça formidavelmente, e floresça não por peculiaridade, mas por criatividade”- Darcy Ribeiro
“O negro vem a ser, apesar de todas as dificuldades que enfrenta, o componente mais criativo da cultura brasileira”.
CONCLUSÕES
A matriz africana no brasil vem de uma organização secular, se não milenar, de apropriações culturais sobre as linhagens de seus antepassados. Já na África eram sociedades complexas, que conheciam a arte, a agricultura e a metalurgia antes do contato com o europeu. Organizavam-se em Estados e realizavam comércio de forma monetária e também amonetária, como é o caso da compra e venda de escravos para trabalho nas lavouras ou para utilização como soldados em guerras. Também compreendiam o conhecimento da fauna e da flora da região. Algumas dessas raízes remontam linhagens de nativos que se originaram na região onde foram encontrados, como é o caso dos Alçás.
O entendimento da complexidade dos povos africanos perpassa por uma série de discussões, que compreende desde suas organizações sociais e seu entendimento como povos marcados por laços de vínculos supremos (ubuntu), de união transcendente, até sua relação de respeito com a natureza como forma de cultuar seus antepassados. A música de Gilberto Gil, Babá Alapalá, mostra a força deste vínculo com os ancestrais, que remonta sucessivas linhagens até uma origem comum, uma gênese do ser humano a partir de divindades que representam os fatos da vida, como os fenômenos naturais e a tecnologia. É uma sociedade marcada por uma ética antropocêntrica que define o homem como critério entre o bem e o mal.
Os reinos compreendiam ordens sociais e tinham em sua figura central um rei, uma figura de poder patriarcal ao qual a ordem se organizava em torno. A este homem, que não se confundia com um comum dos mortais, cabia o ato de governar todas as famílias ao lado de outros poderosos do país, conceder bênçãos e participar de rituais. A este indivíduo cabia ressaltar a proximidade sua com a linhagem ancestral da região, o que garantia o poder sobre encantamento e feitiços.
O vídeo ainda ressalta a importância de se compreender a língua do povo, que se comunicava através da imagem da natureza que os compreendia. Perguntava-se sobre o sol quando queria caracterizar o momento presente. Este (o sol), representava um símbolo muito forte de significado para o povo africano, que via em sua figura o estabelecimento da ordem entre a vida e a morte, ou seja, o mundo dos vivos e o mundo do antepassados. Ao mundo dos ancestrais, que a muito se assemelhava com o mundo dos vivos, pertenciam a terra e a água, as florestas e os serões, os animais e as plantas. A estes espíritos cabia também a garantia de benesses e proteção aos vivos.
A África também foi um continente visitado por outras etnias, como os árabes que trouxeram consigo o islamismo e seu conhecimento agregado. Aos povos que receberam essa educação mais formal, como os Males, coube o espírito de organizar insurreições contra os senhores brancos e a escravidão brasileira do século XIX.
Sinteticamente, a matriz africana presente no povo brasileiro é uma matriz altamente culta e criativa, altamente estética e altamente ligada à suas linhagens antepassadas. A presença da religião é forte no povo africano, pois para eles, Deus compreende todo fenômeno natural e humano observável. Dela, a cultura brasileira herdou o vigor criativo que tanto a caracteriza na sua identidade social.