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A Escola Tecnicista
Ao findar a primeira metade do século XX, o escolanovismo apresentava sinais visíveis de exaustão. As esperanças depositadas na reforma da escola resultaram frustradas. Um sentimento de desilusão começava a se alastrar nos meios educacionais. A pedagogia nova, ao mesmo tempo que se tornava dominante como concepção teórica – a tal ponto que se tornou senso comum o entendimento segundo o qual a pedagogia nova é portadora de todas as virtudes e nenhum vício, ao passo que a pedagogia tradicional é portadora de todos os vícios e nenhuma virtude - ,na prática revelou-se ineficaz em face da questão da marginalidade. Assim, de um lado surgiram tentativas de desenvolver uma espécie de “Escola Nova Popular”, cujos exemplos mais significativos são as pedagogias de Freinet e de Paulo Freire; de outro lado, radicalizava-se a preocupação com os métodos pedagógicos presentes no escolanovismo que acaba por desembocar na eficiência instrumental. Articula-se aqui uma nova teoria educacional: a pedagogia tecnicista.
A partir do pressuposto da neutralidade científica e inspirada nos princípios de racionalidade, eficiência e produtividade, essa pedagogia advoga a reordenação do processo educativo de maneira a torna-lo objetivo e operacional. De modo semelhante ao que ocorreu no trabalho fabril, pretende-se a objetivação do trabalho pedagógico. Com efeito, se no artesanato o trabalho era subjetivo, isto é, os instrumentos de trabalho eram dispostos em função do trabalhador e este dispunha deles segundo seus desígnios, na produção fabril essa relação é invertida. Aqui, é o trabalhador que deve se adaptar ao processo de trabalho, já que este foi objetivado e organizado na forma parcelada. Nessas condições, o trabalhador ocupa seu posto na linha de montagem e executa determinada parcela do trabalho necessário para produzir determinados objetos. O produto é, pois, uma decorrência da forma como é organizado o processo. O concurso das ações de diferentes sujeitos produz assim um resultado com o qual nenhum dos sujeitos se identifica e que, ao contrário, lhes é estranho.
O fenômeno acima mencionado ajuda-nos a entender a tendência que se esboçou com o advento daquilo que estou chamando de “pedagogia tecnicista”. Buscou-se planejar a educação de modo a dotá-la de uma organização racional capaz de minimizar as interferências subjetivas que pudessem pôr em risco sua eficiência. Para tanto, era mister operacionalizar os objetivos e, pelo menos em certos aspectos, mecanizar o processo. Daí a proliferação de propostas pedagógicas tais como o enfoque sistêmico, o microensino, o telensino, a instrução programada, as maquinas de ensinar etc. Daí também o parcelamento do trabalho pedagógico com a especialização de funções, postulando-se a introdução no sistema de ensino de técnicos dos mais diferentes matizes. Daí, enfim, a padronização do sistema de ensino a partir de esquemas de planejamento previamente formulados aos quais devem se ajustar as diferentes modalidades de disciplinas e práticas pedagógicas.
Se na pedagogia tradicional a iniciativa cabia ao professor – que era, ao mesmo tempo, sujeito do processo, o elemento decisivo e decisório – e na pedagogia nova a iniciativa desloca-se para o aluno – situando-se o nervo da ação educativa na relação professor-aluno, portanto, relação interpessoal, intersubjetiva -, na pedagogia tecnicista, o elemento principal passa a ser a organização racional dos meios, ocupando o professor e o aluno posição secundária, relegados que são à condição de executores de um processo cuja concepção, planejamento, coordenação e controle ficam a cargo de especialistas supostamente habilitados, neutros, objetivos, imparciais. A organização do processo converte-se na garantia da eficiência, compensando e corrigindo as deficiências do professor e maximizando os efeitos de sua intervenção.
Cumpre notar que, embora a pedagogia nova também dê grande importância aos meios, há, porém, uma diferença fundamental: enquanto na pedagogia nova os meios são dispostos em função da relação professor-aluno, estando, pois, a serviço dessa relação, na pedagogia tecnicista a situação inverte-se. Enquanto na pedagogia nova são professores e alunos que decidem se utilizam ou não determinados meios, bem como quando e como o farão, na pedagogia tecnicista dir-se-ia que é o processo que define o que professores e alunos devem fazer e, assim também, quando e como o farão.
Compreende-se, então, que para a pedagogia tecnicista a marginalidade não será identificada com a ignorância nem será detectada a partir do sentimento de rejeição. Marginalizado será o incompetente (no sentido técnico da palavra), isto é, o ineficiente e improdutivo. A educação estará contribuindo para superar o problema da marginalidade na medida em que formar indivíduos eficientes, isto é, aptos a dar sua parcela de contribuição para o aumento da produtividade da sociedade. Assim, estará ela cumprindo sua função de equalização social.
Nesse contexto teórico, a equalização social é identificada com o equilíbrio do sistema (no sentido do enfoque sistêmico). A marginalidade, isto é, a ineficiência e improdutividade, constitui-se numa ameaça à estabilidade do sistema. Como este comporta múltiplas funções, às quais correspondem determinadas ocupações, e como essas diferentes funções são interdependentes, de tal modo que a ineficiência no desempenho de uma delas afeta as demais e, em consequência, todo sistema, cabe à educação proporcionar um eficiente treinamento para a execução das múltiplas tarefas demandadas continuamente pelo sistema social. A educação será concebida, pois, como um subsistema, cujo funcionamento eficaz é essencial ao equilíbrio do sistema social de que faz parte. Sua base de sustentação teórica desloca-se para a psicologia behaviorista, a engenharia comportamental, a ergonomia, informática, cibernética, que têm em comum a inspiração filosófica neopositivista e o método funcionalista. Do ponto de vista pedagógico, conclui-se que, se para a pedagogia tradicional a questão central é aprender e para a pedagogia nova, aprender a aprender, para a pedagogia tecnicista o que importa é aprender a fazer.
À teoria pedagógica acima exposta corresponde uma reorganização das escolas que passam por um crescente processo de burocratização. Com efeito, acreditava-se que o processo se racionalizava na medida em que se agisse planificadamente. Para tanto, era mister baixar instruções minuciosas sobre como proceder com vistas a que os diferentes agentes cumprissem cada qual as tarefas específicas acometidas a cada um no amplo espectro em que se fragmentou o ato pedagógico. O controle seria feito basicamente pelo preenchimento de formulários. O magistério passou, então, a ser submetido a um pesado e sufocantes ritual, com resultados visivelmente negativos. Na verdade, a pedagogia tecnicista, ao ensaiar transpor para a escola a forma de funcionamento do sistema fabril, perdeu de vista a especificidade da educação, ignorando que a articulação entre escola e processo produtivo se dá de modo indireto e por meio de complexas mediações. Além do mais, na prática educativa, a orientação tecnicista cruzou com as condições tradicionais predominantes nas escolas bem com a influência da pedagogia nova que exerceu poderoso atrativo sobre os educadores. Nessas condições, a pedagogia tecnicista acabou por contribuir para aumentar o caos no campo educativo, gerando tal nível de descontinuidade, de heterogeneidade e de fragmentação, que praticamente inviabiliza o trabalho pedagógico. Com isso, o problema da marginalidade só tendeu a se agravar: o conteúdo do ensino tornou-se irrelevante em face dos altos índices de evasão e repetência.
A situação acima descrita afetou particularmente a América Latina já que desviou das atividades-fim para as atividades-meio parcela considerável dos recursos sabidamente escassos destinados à educação. Sabe-se, ainda, que boa parte dos programas internacionais de implantação de tecnologias de ensino nesses países tinham por detrás outros interesses como, por exemplo, a venda de artefatos tecnológicos obsoletos aos países subdesenvolvidos (cf. MATTELART, 1976 e s.d.).