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Introdução ao pensamento pré-socrático
Se compreendermos a Filosofia em um sentido amplo – como concepção da vida e do mundo –, podemos dizer que sempre houve Filosofia. De fato, ela responde uma exigência da própria natureza humana; o homem, imerso no mistério do real, vive a necessidade de encontrar uma razão para o mundo que o cerca e para os enigmas de sua existência. Neste sentido, todo povo, por primitivo que seja, possui uma concepção do mundo. Mas se compreendermos a Filosofia em um sentido próprio, isto é, como o resultado de uma atividade da razão humana que se defronta com a totalidade do real, torna-se impossível pretender que filosofia tenha estado presente em todo e qualquer tipo de cultura. O que a História nos mostra é exatamente o contrário: a Filosofia é um produto da cultura grega, devendo-se reconhecer que se trata de uma das mais importantes contribuições daquele povo antigo ao mundo ocidental.
A Filosofia teve o seu início nas colônias da Grécia, nos séculos VI e V a.C. Assim, a filosofia grega se desenvolve da periferia para o centro, concentrando-se em Atenas somente mais tarde, com os sofistas e os filósofos chamados socráticos. E aqui devemos acenar a um primeiro problema importante: o da origem da filosofia grega e a influência do Oriente. A florescente navegação e a rica atividade comercial das colônias jônicas da Ásia Menor punha-as em contato com os povos do Egito, da Fenícia e da Mesopotâmia, e a influência destes povos vizinhos sobre o processo de formação da filosofia grega não pode ser ignorada.
A opinião dos autores sobre este problema, sobretudo no século passado, debatia-se entre duas teses extremas: a primeira afirma que a Grécia trouxera do Oriente todos os principais conteúdos de sua cultura, e assim sendo, seria ela destituída de originalidade maior, mesmo em relação à Filosofia. E a segunda tese faz o elogio do “milagre grego”, defende a independência do gênio helênico, considerando-o uma espécie de produto exótico dentro do panorama bárbaro dos povos antigos. São teses exacerbadas, que hoje vêm sendo substituídas por uma visão mais equilibrada.
Sem dúvida, os gregos sofreram a influência de outros povos. Todo povo desenvolve certas ideias sobre a vida e o mundo, desdobra certas concepções sobre a alma, sobre a origem do mundo a partir do caos, sobre os ciclos cósmicos e a unidade do universo, etc. Estas ideias, sob a forma de mitos, estão presente nas mais antigas religiões. Povos mais adiantados, como o do Egito e de outros países do Oriente Médio, chegaram até mesmo a desenvolver uma matemática, uma astronomia, uma medicina. Que o contato com todos estes povos não poderia deixar os gregos imunes, é obvio. Muitos dos temas que vão ocupar os filósofos gregos estão longe de poderem ser considerados originais. Mas a respeito disto, pode-se dizer que os gregos constituem uma exceção e que nos legaram uma cultura altamente original.
Esta originalidade pode ser constatada em dois pontos básicos: a) se certos elementos “bárbaros” penetraram na Grécia, isto não autoriza a inferir que todo o conteúdo do pensamento grego seja alienígena. Receberam, sem dúvida, certas ideias gerais, mais ou menos comuns de resto aos povos primitivos; dos povos mais adiantados, receberam certa ciência – mas seria absurdo pretender que se tenham limitado ao recebido de fora. Estes conteúdos todos funcionaram mais como um ponto de partida, que de forma alguma é incompatível com a tica contribuição do próprio povo grego. Se compararmos a cultura grega com as outras culturas da época, as diferenças revelam-se mais acentuadas do que o que possam ter de comum. b) Por maior que tenha sido o impacto do não-grego sobre o grego, o surto da Filosofia jamais se poderia explicar pela simples coincidência de conteúdos. O que importa salientar é que se instaura na Grécia um tipo de comportamento humano mais acentuadamente racional. E este maior respeito à dimensão especificamente racional do homem, sem o qual é impossível pensar o surto da Filosofia, que caracteriza o povo grego. Evidentemente, neste ponto também se devem evitar categorias absolutas; não se trata de contrapor os gregos aos outros povos, como se estes fossem destituídos de racionalidade. Mas diante do real, os gregos não se limitaram a uma atividade prática ou a um comportamento propriamente religioso; ao lado sito, souberam assumir um comportamento propriamente filosófico: a pergunta filosófica exige uma postura mais puramente intelectual. Sem esta maior autonomia do comportamento racional, não se poderia compreender o surto da filosofia grega. Por isto, em seu sentido forte e específico, a Filosofia é um produto original da cultura grega. Cremos que Nietzsche resumiu o problema através de uma frase famosa: “Outros povos nos deram santos, os gregos nos deram sábios.”
Mas a instauração deste comportamento racional coloca ainda outras questões não menos complexas e difíceis de serem resolvidas. Devemos fazer também uma breve referência ao problema dos supostos religiosos do pensamento grego, ou ao problema das relações entre Religião e Filosofia na Grécia.
Mais uma vez, o surto da Filosofia só pode ser compreendido através de certas características muito peculiares à religião grega. Não se trata de afirmar que a Religião tenha sido a causa da instauraçãoo da Filosofia; também não se trata tão-só de reconhecer a coincidência de certos conteúdos. O problema consiste muito mais em compreender como estes conteúdos foram transferidos de um contexto mítico para o domínio da pergunta racional. Quando Tales afirma que a água é o elemento primordial de todas as coisas, há nisto uma clara ressonância do mito homérico, que mergulha por sua vez nas mais primitivas crenças religiosas. Mas tal ressonância não autoriza a dizer que a afirmação do mundo natural implica a recusa de uma realidade sobrenatural. Sem dúvida, as colônias em que se desenvolveu a filosofia pré-socrática não se caracterizam pela intensa religiosidade da Grécia peninsular – que se extasiava, na mesma época, com a tragédia. Não é, contudo, a falta de religiosidade que explica o surto da Filosofia. Trata-se muito mais de outro tipo de religiosidade, que obrigava o homem das colônias a viver mais por si mesmo e a desenvolver uma certa ousadia intelectual. O itinerário do pensamento pré-socrático não se desdobra do “mito ao logos”, mas de um logos mítico para a conquista de um logos mais acentuadamente noético.
Por outro lado, se quisermos explicar tal ousadia devemos atentar a um rasgo fundamental da religiosidade grega: o homem grego não compreende os seus deuses como pertencentes a um mundo sobrenatural; deparamos com uma religião que desconhece o dogma ou qualquer tipo de verdade que não encontre os seus fundamentos na própria ordem natural. Os deuses gregos apresentam-se com uma evidência que os prende à ordem natural das coisas. Não existe o exclusivismo do Deus hebraico ou muçulmano, que só reconhece o homem quando este se converte. Longe de se limitarem a uma igreja ou aos privilégios de um povo escolhido, os deuses gregos são reconhecidos em sua presença puramente natural na ordem do mundo. E é esta presença natural que empresta aos deuses gregos uma universalidade ímpar. Os deuses existem assim como existem as plantas, as pedras, o amor, os homens, o riso, o choro, a justiça.
A partir de tais supostos religiosos compreende-se que aos poucos uma atitude filosófica diante do real se tornasse viável, que o homem passasse a afirmar-se como um ser que por suas próprias forças questiona o real. Claro que a autonomia da pergunta filosófica só pode surgir ao cabo de um longo itinerário. Se em Homero o poeta se esconde, anônimo atrás dos feitos dos deuses e dos heróis, já Hesíodo se apresenta como homem, e quase que constrói a seu modo uma teogonia. Desta forma, a atividade racional do homem se afirma com uma intensidade crescente, até atingir, ao tempo dos pré-socráticos, o seu primeiro momento de naturalidade. Burnet chama a atenção para o fato de que os primeiros filósofos usam até mesmo a palavra deus em um sentido não religioso. Se o pensamento filosófico é em certa medida condicionado pela Religião, esta passa agora a sofrer o impacto da Filosofia.
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Aristóteles, em sua Metafísica, chamou os filósofos pré-socráticos de physikoi, físicos. A expressão não é incorreta, mas presta-se facilmente a equívocos. A “física” pré-socrática nada tem a ver com a física na acepção moderna da palavra, assim como a physis não pode ser traduzida sem mais pela palavra natureza. Hoje, a natureza tende a confundir-se sempre ais com o objeto das ciências da natureza, com algo que pode ser dominado pelo homem, que pode ser posto a seu serviço e canalizado em termos de técnica. Desta forma, a natureza transforma-se em expressão da vontade de poder.
Mas não é dentro desta perspectiva que podemos aceder ao conceito pré-socrático de natureza. A física dos primeiros filósofos gregos não é uma disciplina que se contraponha a outras disciplinas, como a Lógica, a Ética ou a Física tal como se compreende hoje. Se chamarmos, com Aristóteles, de física a filosofia pré-socrática devemos entender por esta expressão o saber do ente na sua totalidade.
Como a physis é o conceito fundamental de todo o pensamento pré-socrático, cabem aqui algumas breves observações introdutórias ao tema.
Etimologicamente, physis é um abstrato formado pelo sufixo sis e pela raiz verval phy; na voz ativa: phuein, na voz média: phuesthai. Patzer analisa a palavra em função de Homero, e constata que estas duas formas verbais são aplicadas [referencialmente ao mundo vegetal. Na voz ativa significa produzir (como o bosque que na primavera produz folhas), e na voz média significa crescer (aos ciclopes, “tudo cresce sem sementes e sem arado”). O reino vegetal seria, assim, o originário, estendendo-se, mais tarde, o significado do verbo a ponto de assumir uma amplidão máxima. Jaeger diz que a palavra physis designa o processo de surgir e desenvolver-se, razão pela qual os gregos a usavam frequentemente com um genitivo. E acrescenta Jaeger: “Mas a palavra abarca também a fonte originária das coisas, aquilo a partir do qual se desenvolvem e pelo qual se renova constantemente o seu desenvolvimento; com outras palavras, a realidade subjacente às coisas de nossa experiência”. Burnet, por sua vez, afirma que “na língua filosófica grega, physis designa sempre o que é primário, fundamental e persistente, em oposição ao que é secundário, derivado e transitório”.
Já por estas sumárias indicações percebe-se a densidade filosófica que acompanha a palavra physis, conceito complexo do qual depende a compreensão que se possa ter do pensamento pré-socrático. Insistindo um pouco mais no problema, podemos destacar três aspectos fundamentais da physis:
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A palavra physis indica aquilo que por si brota, se abre, emerge, o desabrochar que surge de si próprio e se manifesta neste desdobramento, pondo-se no manifesto. Trata-se, pois, de um conceito que nada tem de estático, que se caracteriza por uma dinamicidade profunda, genética. “Dizer que o Oceano é a gênese de todas as coisas é virtualmente o mesmo que dizer que é a physis de todas as coisas”, afirma Wener Jaeger referindo-se a Homero. Neste sentido, a physis encontra em si mesma a sua gênese; ela é arké, princípio de tudo aquilo que vem a ser. O pôr-se no manifesto encontra na physis a força que leva a ser manifesto. Por isto pode Heidegger dizer que “a physis é o próprio ser, graças ao qual o ente se torna e permanece observável”.
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Em nossos dias, a natureza se contrapõe ao psíquico, ao anímico, ao espiritual, qualquer seja o sentido que se empreste a estas palavras. Mas para os gregos, mesmo depois do período pré-socrático, o psíquico também pertence à physis. Esta importante dimensão da physis pode ser melhor compreendida a partir de sua gênese mitológica. Já afirmamos que os deuses gregos não são entidades sobrenaturais, pois são compreendidos como parte integrante da natureza. Em Homero, por exemplo, a presença dos deuses aparece como superior aos homens e ao mesmo tempo como algo que lhes é próximo: os deuses estão presentes em tudo o que acontece e tudo acontece como que através dos deuses. Esta presença transparece ainda em Tales, na frase que lhe é atribuída: “tudo está cheio de deuses”. Evidentemente, com o surto da Filosofia a atitude do homem frente às coisas sofre uma transformação, acentuando-se a exigência de racionalidade. Segundo Jaeger, Tales emprega a palavra deus “em um sentido um tanto distinto daquele em que a empregariam a maioria dos homens”. Os deuses de Tales não vivem em uma região longínqua, separada, pois tudo, todo o mundo que rodeia o homem e que se oferece ao seu pensamento, está cheio de deuses e dos efeitos de seu poder. “Tudo está cheio de misteriosas forças vivas; a distinção entre a natureza animada e a inanimada não tem fundamento algum; tudo tem uma alma. Esta ideia da alma, de forças misteriosas que habitam a physis, transforma a esta em algo de inteligente, empresta-lhe certa espiritualidade, afastando-a do sem-sentido, anárquico e caótico. Veja-se, como exemplo, o fragmento 67, de Heráclito: “Deus é dia e noite, inverno e verão, guerra e paz, abundância e fome. Mas toma formas variadas, assim como o fogo, quando misturado com essências, toma o nome segundo o perfume de cada uma delas.” Ou ainda o fragmento 64: ”O relâmpago (que é a arma de Zeus) governa o universo.” Esta ideia de que o deus pertence em algum sentido à physis é característica de todo o pensamento pré-socrático, e continua viva mesmo em Demócrito, como o atestam os fragmentos 18, 21, 112 e 129. À physis pertence, portanto, um princípio inteligente, que é reconhecido através de suas manifestações e ao qual se emprestam os mais variados nomes: Espírito, pensamento, Inteligência, Logos, etc.
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A physis compreende a totalidade de tudo o que é. Ela pode ser apreendida em tudo o que acontece: na aurora, no crescimento das plantas, no nascimento de animais e homens. E aqui convém chamar a atenção para um desvio em que facilmente incorre o homem contemporâneo. Posto que a nossa compreensão do conceito de natureza é muito mais estreito e pobre que a grega, o perigo consiste em julgar a physis como se os pré-socráticos a compreendessem a partir daquilo que nós hoje entendemos por natureza; neste sentido, se comprometeria o primeiro pensamento grego com uma espécie de naturalismo. Em verdade, a physis não design precipuamente aquilo que nós, hoje, compreendemos por natureza, estendendo-se, secundariamente ao extranatural. Para os pré-socráticos, já de saída, o conceito de physis é o mais amplo e radical possível, compreendendo em si tudo o que existe. Não se compreende o psíquico, por exemplo, a partir do modo de ser da natureza em seu sentido atual, como não se entende aos deuses a partir de nosso conceito mais parco de natureza. À physis pertencem o céu e a terra, a pedra e a planta, o animal e o homem, o acontecer humano como obra do homem e dos deuses, e, sobretudo, pertencem à physis os próprios deuses. Devido a esta amplidão e radicalidade, a palavra physis designa outra coisa que o nosso conceito de natureza. Vale dizer que na base do conceito de physis não está nossa experiência da natureza, pois a physis possibilita ao homem uma experiência totalmente outra que a que nós temos frente à natureza. Assim, a physis compreende a totalidade daquilo que é; além dela nada há que possa merecer a investigação humana. Por isso, pensar o todo do real a partir da physis não implica em “naturalizar” todos os entes ou restringir-se a este ou aquele ente natural. Pensar o todo do real a partir da physis é pensar a partir daquilo que determina a realidade e a totalidade do ente.
Estas parecem ser as notas fundamentais da physis, possibilitadoras da “física” pré-socrática. Pensando a physis, o filósofo pré-socrático pensa o ser, e a partir da physis pode então aceder a uma compreensão da totalidade do real: do cosmos, dos deuses e das coisas particulares, do homem e da verdade, do movimento e da mudança, do animado e do inanimado, do comportamento humano e da sabedoria, da política e da justiça
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Não deixa de causar surpresa a intensidade crescente do interesse que se vem manifestando pelo pensamento pré-socrático. De Nietzsche a Heidegger, as interpretações se sucedem, e a obra dos fundadores da filosofia ocidental, embora dela só conheçamos fragmentos, surge com um viço inesperado e consegue abrir perspectivas novas para a compreensão da problemática filosófica. De fato, até há bem pouco tempo eram os pré-socráticos considerados filósofos “menores”, relegados à posição secundária de simples percursores: Platão e Aristóteles impunham-se como a medida que determinava qualquer acesso ao pensamento que os antecedeu. Mas o imenso e inesgotável trabalho de redescoberta, que vem sendo realizado em nossos dias, obrigou a situar os critérios de interpretação em outras bases; podemos mesmo afirmar que o denominador comum das pesquisas contemporâneas consiste em libertar a filosofia dos pré-socráticos da milenar tutela platônica-aristotélica; consiste em tentar elucida-los escutando o que dizem os próprios fragmentos, evitando-se visualizá-los através de conceitos de evidente formação ulterior, e que lhes roubam a sua dimensão mais própria e original.
Libertar os pré-socráticos de doutrinas que os condenaram ao esquecimento é um trabalho árduo; mas ainda mais difícil é compreender a linguagem dos pais da filosofia ocidental. Os vinte e cinco séculos que nos separam deles, tornaram a sua obra distante e aparentemente estranha às preocupações do pensamento de hoje. Comparados à moderna terminologia filosófica, expressam-se de um modo não raro enigmático, frequentemente acusado de antifilosófico; o fato de que muitos deles foram poetas, de que se expressavam numa linguagem que o rigor moderno tacha de arbitrária, de que recorriam até mesmo aos mitos – são razões que, segundo certos autores, “inferiorizam” a condição filosófica dos pré-socráticos. E as tais dificuldades e preconceitos, acresce-se um grave azar histórico: de nenhum deles conhecemos a obra completa; o esforço dos pesquisadores conseguiu colher tão-só frases incompletas e citações esparsas em um grande número de autores antigos – de Platão e Aristóteles até os primitivos padres da Igreja.
Mas a despeito destas dificuldades e das desvantagens de ordem material, como duvidar da transcendental importância da coleção de fragmentos que vieram até nós? Realmente, como ignora a sibilina densidade dos pensamentos de um Parmênides ou de um Heráclito? Como permanecer alheio à profundidade que esconde o único fragmento de Anaximandro que conhecemos e que pode ser considerado o mais antigo texto filosófico ocidental? O pensamento pré-socrático oferece momentos que devem ser considerados como um dos pontos culminantes da História da Filosofia. Longe de poderem ser empalidecidos sob o epíteto de percursores, encontramos em sua fragmentada obra os fundamentos que determinaram o próprio curso do pensamento ocidental Neste sentido, ao contrário de serem distantes e estranhos, conservam a sua atualidade através da sinuosa e ingrata memória do homem.