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A FILOSOFIA, SUA NECESSIDADE E SEU OBJETIVO, REFLEXÃO E SABEDORIA
INTRODUÇÃO
“Que é filosofia?” perguntava-se Jules Lachelier no decorrer de sua aula inaugural, por ocasião de seu primeiro ano de magistério em Toulouse. E, para estupefação de seus jovens alunos, respondia: “Não sei!”. E toda cidade de Toulouse zombava do jovem e brilhante filósofo vindo de Paris, que nem sequer sabia o que era a disciplina que estava encarregado de ensinar a seus alunos!
A observação de Jules Lachelier tinha, entretanto, um profundo sentido. Ela significava que a filosofia não é matéria de conhecimento. Em todas as outras disciplinas temos algo que aprender: em matemática, uma sequencia lógica de teoremas; em física, em ciências naturais, em história, um conjunto de fatos ou acontecimentos, que os professores procuram explicar de modo racional. Em filosofia não é assim. Sem dúvida, pede-se ao aluno que retenha algumas das ideias e das teorias dos grandes filósofos. Mas ninguém é obrigado a pertencer ou dar a sua aprovação a uma ou outra dessas teorias. Aliás, nenhum sistema filosófico obteve, até hoje, a concordância unânime dos espíritos competentes. S. Tomás de Aquino e Karl Marx, por exemplo, são ambos dois grandes filósofos; seus “sistemas”, entretanto, são bastante diferentes, antagônicos mesmo.
Se alguém espera da filosofia um conjunto de conhecimentos precisos e certos, bastando tão-somente adquiri-los, sua decepção será completa.
Já que a filosofia não nos dá um saber, será que não nos proporá uma arte de viver, uma determinada moral? Acontece que os sistemas que propõe ao homem regras de conduta são também tão diversos quanto aqueles que pretendem explicar o mundo. Não há, em filosofia, “verdade” da mesma ordem de um teorema ou uma lei física. Os sistemas sucedem-se no decorrer da história. Cada filósofo preocupa-se em refutar os que o precederam e, por sua vez, também será refutado. Gusdorf observa que “nenhuma filosofia pôs termo à Filosofia, se bem que este seja o desejo secreto de toda filosofia. Assim, cada filósofo, até certo ponto como cada artista – pintor, músico ou poeta –, possui sua própria maneira de ver e explicar o mundo, sua própria “weltanschauung”, como dizem os alemães. Será, então, necessário concluir com Paul Valéry que um sistema filosófico “é coisa nem mais nem menos séria que uma suíte em ré menor”?
Na realidade, as discussões e discórdias dos filósofos conduzem ao cepticismo apenas os preguiçosos: os outros, ao contrário, encontrarão aí um insistente convite para se debruçarem sobre estes problemas, para refletirem por conta própria. As teorias filosóficas não são valiosas, em princípio, pelo seu conteúdo ou pelas conclusões a que chegam, mas porque oferecem o exemplo de uma reflexão em que existe o esforço de uma conduta rigorosa. Como havia notado Kant: “Não há filosofia que se possa aprender; só se pode aprender a filosofar”.
A etimologia da palavra “filosofia”, se atentarmos bem, confirma essa interpretação. A filosofia não é a “sofia” mesma, ciência e sabedoria ao mesmo tempo. É somente o desejo, a procura, o amor dessa “sofia”. Esta distinção essencial, proposta por Pitágoras, é atualmente ressaltada por Jaspers. Em seu pequeno e brilhante livro “Introdução à Filosofia”, Jaspers insiste na ideia de que a essência da filosofia é a procura do saber e não a sua posse. Todavia, ela “se trai a si mesma quando degenera em dogmatismo, isto é, num saber posto em fórmula, definitivo, completo. Fazer filosofia é estar em caminho; as perguntas em filosofia são mais essenciais que as respostas e cada resposta transforma-se numa nova pergunta”. Há então, na pesquisa filosófica, uma humildade autêntica que se opõe ao orgulhoso dogmatismo do fanático: o fanático está certo de possuir a verdade. Assim sendo, ele não tem mais necessidade de pesquisar e sucumbe à tentação de impor sua verdade a outrem. Acreditando estar com a verdade, ele não tem mais o cuidado de se tornar verdadeiro; a verdade é seu bem, na propriedade, enquanto que para o filósofo ela é uma exigência. No caso do fanático, a busca da verdade degradou-se na ilusão da posse de uma certeza. Ela se acredita o proprietário da certeza, ao passo que o filósofo esforça-se por ser o peregrino da verdade. A humildade filosófica consiste em dizer que a verdade não pertence mais a mim que a ti, mas que ela está diante de nós. Assim, a consciência filosófica não é nem uma consciência feliz, satisfeita com a posse de um saber absoluto, nem uma consciência infeliz presa das torturas de um cepticismo irremediável. Ela é uma consciência inquieta, insatisfeita com o que possui, mas à procura de uma verdade para a qual ela se sente talhada.
FILOSOFIA E REFLEXÃO
Expressar-se-á bem a ideia de que filosofia é procura e não posse, definindo o trabalho filosófico como um trabalho de reflexão. A reflexão é uma espécie de movimento de volta a si mesmo (re-flexão) executado pelo espírito que põe em pauta os conhecimentos que possui. A experiência da vida nos dá uma multidão de impressões e opiniões. A prática de uma especialidade, o conhecimento científico, trazem-nos outras noções mais completas e precisas. Todavia, por mais rica que seja a nossa experiência da vida, por mais completos que sejam nossos conhecimentos científicos ou técnicos, nada disso atua como filosofia. Ser filósofo é refletir sobre este saber, interrogar-se sobre ele, problematiza-lo. Definir a filosofia como re-flexão é ver nela um conhecimento não do primeiro grau, mas do segundo, um conhecimento do conhecimento, um saber do saber.
O modelo da reflexão filosófica – e ao mesmo tempo seu exemplo mais acessível – é a “ironia” socrática, isto é, o ato de interrogar, a problematização do assunto. No diálogo de Platão intitulado Menon, Sócrates interroga Menon sobre a virtude. Menon tem uma certa experiência de vida e da moral, a noção de virtude lhe é familiar: “Não há, diz ele, dificuldade de minha parte em falar sobre isso”. Instado por Sócrates a definir a virtude, Menon responde sem hesitar que “a virtude consiste em ser capaz de comandar os homens”. Sócrates retruca que a criança e o escravo podem ser virtuosos e que, todavia, não lhes cabe comandar. Menon apenas deu, entre outros, um exemplo de virtude, não apresentou definição. Elevando-se então ao nível de “conceito”, isto é, a ideia geral que “abrange a virtude em toda sua extensão”, Menon declara que ser virtuoso “é querer coisas boas”. Mas Sócrates faz notar que o ouro e a prata são bens, e que aquele que o procura só é virtuoso sob a condição de agir conforme a justiça e a piedade. As respostas de Menon suscitam, como se vê, cada vez mais, novas perguntas de Sócrates. Menon acreditava saber, ao passo que Sócrates declarava: “Eu só sei uma coisa: é que nada sei”. Assim, Sócrates não cessava de fazer as mais inocentes perguntas a pessoas que, certas do seu saber, inicialmente divertiam-se muito com a ingenuidade de Sócrates. Mas logo as perguntas de Sócrates perturbavam-nas, levando-as a descobrir as contradições de seu próprio pensamento e a verificar que nada sabiam; assim, a ironia socrática revelava-lhes a própria ignorância em toda a sua nudez. Note-se que Sócrates não transmite nenhum saber a Menon. Ele se limita a fazer interrogações. A matéria da reflexão é aqui, não o saber de Sócrates, mas o saber de Menon. Menon nada aprende, ele reflete. Os problemas que descobre já estavam, sem que soubesse, implícitos em sua experiência e saber anteriores. Sócrates comparava-se de bom grado à mãe, que era parteira. Ele nada ensinava, mas contentava-se em “partejar” os espíritos, em ajuda-los a fazer vir à luz os problemas e as dificuldades que traziam em si mesmos. Sócrates é filósofo por excelência precisamente porque nada ensina, mas no faz refletir.
Sócrates meditava sobre os problemas da vida cotidiana, sobre as técnicas dos artesãos, sobre a política. O universo intelectual e industrial em que vivemos, após dois mil anos de história, é infinitamente mais complexo que o mundo dos contemporâneos de Sócrates. O espírito da reflexão filosófica não mudou, mas sua matéria enriqueceu-se prodigiosamente. O filósofo não poderia ignorar, particularmente, o notável desenvolvimento das ciências e das técnicas, que constitui atualmente um dos alimentos mais preciosos de suas reflexões. Alguns mesmo, especializam-se, por exemplo, em filosofia da história, em filosofia da biologia, em filosofia do direito. Um contemporâneo disse, acertadamente, que para a reflexão filosófica “Toda matéria a ela estranha, é boa”. E acrescentava até: “Toda boa matéria lhe é estranha”, entendendo, com isto, que filosofia não deve ser uma meditação vazia, mas uma reflexão nutrida por informações precisas sobre este ou aquele domínio do real.
Refletir filosoficamente sobre a ciência é, antes de tudo, interrogar-se sobre os seus resultados e sobre os seus métodos. Qual é a natureza do conhecimento científico? Será que ele atinge a realidade profunda ou apenas nos ministra fórmulas práticas e símbolos operacionais? Qual será o valor e o significado dos axiomas de que fala o matemático? Esta orientação filosófica – tão importante na atualidade – é a epistemologia. Ela desempenha naturalmente um papel essencial na formação intelectual dos estudantes de matemática. Todavia, a reflexão filosófica vai muito além e levanta problemas que a ciência ignora. A ciência se empenha em explicar os fenômenos naturais interligando-os por meio de leis inteligíveis, isto é, exprimíveis em formulas matemáticas. Assim é que se explica cientificamente porque, numa experiência dada, ocorreu determinada coisa e não outra. Mas há outro problema, muito mais geral, de que a ciência não trata. É aquele apresentado por Leibnitz nos seguintes termos: “Por que há alguma coisa de preferencia a nada?” Com efeito, a existência do mundo é um dado implícito a partir do qual a ciência desenvolve seu esforço de ordenação e explicação, dado este que ela sempre pressupõe, sem jamais transformá-lo em problema. Por que existe um mundo ao invés do nada? Eis aqui um tipo de problema propriamente metafísico, isto é, cuja formulação ultrapassa as preocupações da ciência. De onde vem o homem, para onde ele vai? É a consciência o termo final do mundo ou um acidente transitório? Está sujeito o homem a um determinismo ou possui um livre arbítrio? Todos estes problemas são tipicamente metafísicos.
TÉCNICA E SABEDORIA
Vimos que a filosofia não é um saber – desde que no mundo moderno a função de conhecimento é preenchida pela ciência – mas uma reflexão crítica sobre o saber. Ela não só não é um saber como não é um poder. No mundo atual o poder do homem é expresso pela técnica. O ideal prometeico de conquista e transformação do mundo substituiu progressivamente, a partir do Renascimento, o ideal filosófico de sabedoria. A sabedoria consiste numa submissão ao mundo, numa aceitação de todas as coisas, numa resignação à infelicidade. A filosofia – ensinando-nos com os estoicos que o curso do mundo é bom e divino, ou com Spinoza que a cadeia de causas e efeitos é necessária, lógica, inevitável – surgia como instrumento intelectual dessa resignação. A mudança de perspectiva aparece claramente no século XVII, no Discurso sobre o Método, de Descartes. Na terceira parte do Discurso, Descartes faz-se herdeiro da sabedoria estoica para estabelecer uma “moral provisória”. “Vale mais, escreve, mudar os próprios desejos do que a ordem do mundo, vencer-se a si mesmo do que ao destino”. Mas na sexta parte do Discurso, substitui este cosmocentrismo da sabedoria pelo humanismo da técnica que, diz ele, tornará o homem “mestre e senhor da natureza”. E, numa intuição profética, anuncia as futuras conquistas da mecânica e da medicina.
No século XVIII, o grande apologista da técnica é Diderot . Surpreende-se com o fato de se dar maior importância aos filósofos cuja sabedoria consiste na arte de abster-se da felicidade, do que aos industriais cuja técnica, transformando nossa existência, pode efetivamente tornar-nos mais felizes: “Têm-se louvado muito mais os homens ocupados em nos fazer crer que éramos felizes do que os homens ocupados em fazer com que o fôssemos de fato. Quanta extravagância em nossos julgamentos! Exigimos que todos se ocupem utilmente e menosprezamos os homens úteis.
O menosprezo que entristece Diderot já está, de muito, superado nos dias de hoje. O ideal técnico triunfa em toda parte. Do mesmo modo que a ciência destituiu o saber filosófico de todo conteúdo, a eficiência técnica priva o poder filosófico de toda eficácia. Entretanto, a exigência filosófica reapareceria sob outra forma. A partir do saber científico, o objetivo filosófico apresenta-se como reflexão crítica sobre os fundamentos desse saber. A partir do poder técnico, a sabedoria, no sentido moderno, surge como uma reflexão crítica sobre as condições desse poder.
Um tema familiar e angustiante nos dias atuais é o do técnico “aprendiz de feiticeiro”. O terrível perigo suscitado pelo desenvolvimento das armas nucleares, assim como os perigos de “robotização” constituídos pela mecanização de nossa existência, evidenciam incontestavelmente que a técnica não substitui a sabedoria, do mesmo modo que a ciência não substitui a filosofia. “A técnica, escreveu Laberthonnière, ensina-nos a nos servirmos das coisas. Mas saberemos para que nos faremos servir?” A técnica só fornece meios de ação ao homem. Ela emudece quanto aos fins que devem guiar nossa conduta. E mais do que nunca sentimos a necessidade de uma sabedoria para nos esclarecer sobre os fins que devemos procurar. No mundo atual, o esplendor de nossos poderes humanos faz que se ressalte numa luz trágica, a ambiguidade dos nossos desejos. Somente a filosofia levanta o problema dos valores.